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Autor: Flavio Gomes – Categoria(s): Brasil Tags: inspeção veicular
26/05/2010 – 16:45
REPROVADO
SÃO PAULO (dura, a vida) – Fiz minha estreia na Inspeção Veicular. Descobri que os carros com placas pretas realmente estão isentos, o que é uma ótima notícia, porque o sistema, incrível, reconhece isso. O Sistema. Chamá-lo-ei a partir de agora, o Sistema, assim, como entidade superior: começando com maiúscula.
Tenho alguns carros cuja placa termina em 1 e o prazo expirou, ou está expirando. Sei que recebi uma intimada para levar meu Gol 82/83 a ar para a Inspeção, igualmente outra entidade, maiúscula.
Levei. Agendei, só tinha data disponível lá na puta-que-o-pariu-sem-número, onde os terrenos são mais baratos e a empresa que faz isso gasta menos em aluguel. Peguei o carro do jeito que ele é. Um carro que nos últimos três anos rodou 1.500 km, mas está com óleo novinho, todas as luzes funcionando, freio em dia, cinto de segurança e rádio que pega até AM. Nada de errado com meu Golzinho, por isso não fiz uma “pré-inspeção”, como muita gente faz, porque essa merda virou outra indústria de tomar dinheiro dos trouxas, nós.
Paguei a guia pela internet, fui à puta-que-o-pariu-sem-número e percebi que estamos, mesmos, fodidos por causa do Sistema. Na entrada, um cara me disse uma frase de sete palavras: “Escolha uma linha e espere na fila”. Nem bom-dia, boa-tarde, seja-bem-vindo. Escolhi uma fila. Um outro cara se aproximou, de máscara, e disse apenas: “Retire seus objetos pessoais, abra o capô e espere na faixa amarela”. Foi o que fiz, retirei meus objetos pessoais, abri o capô e fui esperar na linha amarela. Mas devo dizer que deixei alguns objetos pessoais no porta-luvas. E desliguei o motor. Não sei se podia.
Enquanto esperava na faixa amarela, outro robô de máscara pegou meu carro e o levou até o box, ou sejá lá que nome tem essa merda. Abriu o capô que quase arrancou a tampa, o desgraçado. Começou a procurar alguma coisa no motor para conectar uns cabos. Não encontrou, provavelmente porque nunca viu um Gol com motor a ar e dois carburadores na vida. Depois, passou um espelho por baixo do carro. Como fazia a Stasi em Checkpoint Charlie, para ver se tinha alguém pendurado no assoalho para fugir para Berlim Ocidental.
Aí enfiou um tubo no escapamento, ligou o carro e ficou acelerando feito um alucinado. E eu na linha amarela com meus objetos pessoais.
Isso feito, desligou o carro, fechou o capô como se fosse a geladeira velha da casa dele, tirou um papel de uma impressora, entregou a outro robô de máscara, que tirou o carro do box e me chamou com um gesto. Fui até ele, com meus objetos pessoais, e recebi um papel e uma explicação. Não entendi porra nenhuma. Mostrou que o HCc (ppm vol.) estava muito alto e me mandou levar o carro numa oficina.
No papel, o veredito: VEÍCULO REPROVADO – ANO EXERCÍCIO 2010.
O Sistema reprovou meu Gol para o Ano Exercício 2010 e acabou. O Sistema tem valores de referência para emissão de poluentes. O Sistema não tem na sua memória, porém, dados sobre emissão de poluentes permitidos em 82, modelo 83. Meu carro não é obrigado a se comportar como um Corolla ou uma Tucson. Meu carro tem carburadores. O Sistema é burro, e não me dá chance de argumentar com os robôs. Argumentar que meu carro não pode emitir os mesmos poluentes que um Corolla ou uma Tucson. Argumentar que meu carro rodou 1.500 km em três anos e poluiu menos o planeta do que o inspetor do meu carro depois de comer uma feijoada. Argumentar que é um carro de coleção. A gente não pode mais falar com ninguém, porque o Sistema não fala. Ele te fode e pronto.
Saí sem saber o que fazer e cantei os pneus como forma de ridículo protesto. E caí na Marginal do Rio Pinheiros me sentindo um pária, reprovado pelo prefeito, pelo governador, pelo secretário do Meio-Ambiente. E fui refetindo sobre esta minha nova condição, de cidadão reprovado, que terá seu nome incluído na dívida ativa do Estado, porque no ano que vem não conseguirei licenciar meu carro que roda 1.500 km a cada três anos.
Foi quando me vi neste aprazível local abaixo.
Marginal do Rio Pinheiros, circa uma da tarde. Trânsito parado. Não é horário de pico, não houve nenhum terremoto, mas o trânsito estava parado, claro. Carros demais, transporte público de menos, caminhões enormes em perimetro urbano, motoqueiros nos “corredores” entre as faixas…
Quer saber? Decidi reprovar o trânsito. Reprovado, pelo meu Sistema, pela minha Inspeção Veicular. Reprovei o prefeito, o governador e o secretário. Não dá para aguentar um trânsito assim, gasta-se muito dinheiro, perde-se muito tempo, polui-se demais o ar. Mais do que meu Gol 82 modelo 83. Bem mais. Reprovado.
Quando olhei para a esquerda, oh, que bela paisagem. Parei numa baia apropriada e fiz o seguinte retrato:
Eis o rio Pinheiros, que corta a cidade e que deveria, como em qualquer cidade civilizada, ser um núcleo de vida, beleza, natureza. É um puta esgoto do caralho. Urubus, garrafas pet, lixo e merda por todos os lados. Um cheiro de vomitar. É um espaço público.
Quer saber? Decidi reprovar o rio Pinheiros. Está reprovado, monte de merda que não é tratada, que infecta o ambiente e as pessoas, criadouro de doenças, gosma nauseante para a qual o prefeito, o governador e o secretário que reprovaram meu Gol 82 modelo 83 estão cagando e andando. Vou-me embora. Mas, ôpa, o que é isso aqui?
Ora, ora, ora… Lixo na baia, muito lixo. Tem até um pneu lá na frente, estão vendo? Água parada ali é dengue na certa. Quem seria o responsável pela manutenção dessa avenida? Por recolher o lixo, carpir o mato? O Sistema? Não sei, é impossível conversar com o Sistema. Mas é feio, uma sujeira da porra, coisa mais nojenta, desleixo absoluto.
Quer saber? Decidi reprovar a Marginal do Rio Pinheiros e aqueles que são os responsáveis por sua limpeza, pelo asseio, pelos bons costumes em logradouro público. Está reprovada, Marginal. E nem venha falar comigo, meu Sistema está inoperante. Fale com o prefeito, com o governador ou com o secretário.
Vamos seguindo. Mas… Êpa, o que é isso?
Esse prédio enorme não é aquele cuja construção foi embargada séculos atrás? Porque o prefeito aprovou a planta e a construtora fez mais alto do que devia? Porque prejudica os aviões que vão pousar em Congonhas, colocando a segurança dos voos em risco? O que é que está fazendo aí, ainda? A Justiça não mandou derrubar, ou desmontar os últimos andares? Sim, mandou. E aí, prefeito? E aí, governador? E aí, secretário?
Quer saber? Reprovei o prédio. Está reprovado, inapelavelmente. Nem adianta reclamar, meu Sistema não conversa com ninguém. Mas, pelo jeito, andaram falando com outros Sistemas, não com aquele que transformou meu Gol 82 modelo 83 num risco à população, mas com outros mais maleáveis, afinal o prédio ainda está aí, pintadinho da silva, alguma coisa está acontecendo com esse Sistema que, para alguns, é mais maleável do que aquele que condenou meu Gol 82 modelo 83.
Mas vamos trabalhar, o dia segue. Rua Tabapuã, Itaim-Bibi, chiquérrimo. Ei, o que é isso aí?
Me parece uma rua com faixa exclusiva de ônibus, mas tem um ali que está na outra faixa. Concessão municipal, o serviço de ônibus, não é mesmo? Esse ônibus não pode estar aí. Atrapalha o trânsito, espreme todo mundo. Onde estão os agentes de trânsito? Os caras que deveriam multar esse motorista mal-educado? Ou orientar o coitado atravessando a rua no meio das motos, dos carros, dos ônibus?
Quer saber? Decidi reprovar o ônibus, o sistema municipal de transportes e os agentes de trânsito. Estão todos reprovados no meu Sistema, se quiserem se queixar, que procurem o bispo. Meu Gol 82 modelo 83, convertido em vilão nacional pelo prefeito, pelo governador e pelo secretário, trafega pela faixa correta. Respeita as leis. Mas é um cão-danado, aos olhos do Sistema.
Estava ficando irritado, disposto a não pensar mais nessas coisas, quando…
Um saco de lixo não recolhido? No meio da calçada? Onde estão as lixeiras? Onde está o serviço municipal que recolhe os sacos de lixo? Se começar a chover e uma enxurrada levar esse saco até uma boca-de-lobo, vai ter enchente. E se meu Gol 82 modelo 83 estiver passando pelo local alagado, pode pifar. Pode submergir. Posso perder meu Gol 82 modelo 83. Será que é isso que querem o prefeito, o governador e o secretário? Eliminar meu Gol 82 modelo 83 porque ele foi reprovado pelo Sistema?
Quer saber? Decidi reprovar o serviço de coleta de lixo da cidade. É ruim, porco, deficiente, superfaturado, uma merda. Meu Sistema, hoje, estava rigoroso. Reprovando tudo. Mas, felizmente, estava chegando ao meu destino, onde poderia pensar com um pouco mais de calma sobre o que fazer com meu Gol 82 modelo 83. Foi quando vi isso aí.
Sim, é um homem estendido no gramado. Um morador de rua. Que não tem onde viver, onde dormir, o que comer. Derrotado pelo Sistema, jogou-se na grama com seus objetos pessoais, um cobertor velho, alguns sacos plásticos de supermercado, trapos imundos cobrindo seu corpo sujo e maltratado, talvez tenha uma caneca, um maço de cigarros, uma garrafa de cachaça.
A ele, nem o prefeito, nem o governador, nem o secretário deram atenção hoje. Preocuparam-se com o HCc (ppm vol.) acima da média do meu Gol 82 modelo 83.
E decidi reprovar os três mais uma vez, e nem quero nada de nenhum de vocês três, prefeito, governador e secretário, com relação ao meu carro e aos meus problemas mundanos como o trânsito, o rio fétido, o pneu largado na avenida, o prédio que derruba aviões, o ônibus na faixa errada, o lixo na calçada.
Tirem esse homem da rua. Se o fizerem, eu juro que farei de tudo para reduzir o HCc (ppm vol.) do meu Gol 82 modelo 83.
Autor: Flavio Gomes – Categoria(s): Brasil Tags: inspeção veicular
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